sexta-feira, 1 de maio de 2015

  Acredito que a Salvador, terra da alegria e do carnaval esteja restrita a orla marítima do mega-pier do Bahia Marina até a última janela do Ondina Apart-hotel. Fogem a esta regra somente ilhas abonadas como os bairros da Graça, Caminho das Árvores, Horto e Alphaville, por exemplo. Estes, os últimos a ainda contarem com cheiro de policiamento e outros serviços garantidos pelo governo. O resto representa a verdadeira Salvador desprovida de tudo.
  Como eu tive a sorte de nascer no Hospital Português (no bairro da Graça) e encontrar pertinho dali uma confortável casa pra me acolher, dormi na confortável miopia burguesa de ladainhar aos quatro ventos as belezas da primeira capital do Brasil. Mas por este ângulo é bela realmente, sem dúvidas. Como não sê-la morando a 300 metros do maravilhoso Farol da Barra? Inconscientemente, ou disfarçadamente, me anulei a esta percepção e somente hoje enxergo uma condição análoga ao espanto que alguns ainda sentem ao se depararem com o efeito macabro de uma chuvarada sobre Salvador, por exemplo. Fica a pergunta: É de hoje que morre gente aterrada por morros desabados? É de hoje que ruas ficam alagadas ao ponto de cobrirem automóveis? É de hoje que o transporte coletivo é humilhante? Com certeza a resposta é não. Só que as pessoas que porventura teriam condições para fazerem alguma coisa caso se vitimassem por uma destas desgraças normalmente não estão – residem ou trabalham - nesta zona de desconforto. Ou seja, a ascensão social, mesmo que seja via sistema político partidário, implica no contágio a miopia citada acima, resultado da consequente elitização desta quase imprescindível figura pública/heróica. Em poucas palavras: fulano cresceu financeiramente e a primeira coisa que faz é se deslocar socialmente e renegar definitivamente suas origens e problemas.
  Invade-me agora a lembrança de quanto a privilegiada condição social camufla a realidade pública. Volto a uma manhã de meados da década de 80 e eu na época com 15 anos, impossibilitado que estava de ir ao colégio de moto devido à chuva, resolvi ir andando mesmo. Não era perto, mas também não era no fim do mundo. Bastava subir a Graça e atravessar a ponte da UFBA para chegar ao bairro do Canela onde ficava o Colégio Baiano – UCBA. Neste trajeto de pouco mais de 1km rememoro os olhares perdidos dentro de embaçados, deteriorados e espremidos ônibus. Quanto mais eu saia da “ilha” Barra/Graça mais a coisa piorava. Ao passar sobre o Vale do Canela parte da verdadeira Salvador se escancarava, pois ali passam os ônibus coletivos vindo da Cidade Baixa e do subúrbio. Era e é sabido que a frota de ônibus obedece à regra de ser lançada primeiramente nos bairros nobres e conforme for envelhecendo ser empurrada para os bairros periféricos. Na minha volta pra casa o absurdo que nunca vai acabar: os chamados ônibus seletivos com ar-condicionado (naquela época chamados de frescões) que serviam ao Shopping Iguatemi e ao Aeroporto, tinham – e ainda tem hoje - o valor da passagem pouquíssima coisa a mais que os miseráveis ônibus da outra Salvador, num privilégio cruel. Pois era deste serviço diferenciado que eu me beneficiava e que contribuía para a minha (e quem sabe de quantos) dificuldade de enxergar a verdadeira cidade.
  Leio frequentemente textos de amigos e de colegas jornalistas como Tony Pacheco​ e Marconi De Souza Reis​ onde de forma sutil ou não perambulam pelo tema chuva/miséria/política e mais enfaticamente no contraste ontem/hoje. Estas leituras terraplanaram uma longa avenida de mensagens subliminares para mim. A quem vamos culpar hoje? A relação esquerda e direita na política facilitava as coisas até o passamento do velho cabeça-branca. Cabeça-branca? Se quem ler este termo tiver menos de 20 anos provavelmente irá se remeter para a pessoa errada numa prova inequívoca de meus conflitos. Mas falo de ACM e não de Jaques Wagner. Que loucura! A alcunha pouco admirada que pertencia ao mais alto representante do coronelismo na Bahia foi absorvida pelo principal expoente da oposição. É um retrato claro da nossa cidade. Uma cidade que parece sofrer da Síndrome de Estocomo, que para mim seria a única explicação pra que este barril de pólvora não exploda!